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domingo, 6 de novembro de 2016

TECNOSFERA


“Tudo está relacionado ao corpo, como se ele tivesse sido redescoberto, depois de ter sido esquecido por muito tempo; linguagem do corpo, consciência do corpo, liberação do corpo, são senhas.” STAROBINSKI, The natural and literary history of bodly sensation, p 353

Para construir um discurso sobre o corpo, é preciso levar em conta o mundo que produzimos e habitamos. A humanidade vive em tempos de tecnosfera. As radicais transformações pela quais está passando devido ao desenvolvimento acelerado da tecnologia e ao surgimento de novos campos de pesquisa _ como a Nanotecnologia, Neurociência, Manipulação Genética, Tecnologia da Informação _ interferem radicalmente no sentido do que é ‘natural’, criando quase que uma nova natureza para o ser humano: o transhumano. Esta esfera da Inteligência Artificial, com uma rapidez surpreendente, traz cada vez mais apuradas tecnologias convergentes, que interconectam tudo e todos através da rede (internet) e de sistemas ubíquos (internet das coisas). Um sistema de intercomunicação artificial vai se estabelecendo de forma cada vez mais aprimorada em todo o planeta. A surgente realidade do ciborgue põe em xeque a ontologia do humano, nos instigando ainda mais insistentemente a nos perguntarmos quem somos e para onde vamos?

Na Antropologia do Ciborgue(1991), Donna Haraway analisa o surgimento das inúmeras ciber-tecnologias _ restauradoras (permitem restaurar funções e substituir órgãos e membros perdidos); normalizadoras (retornam as criaturas a uma indiferente normalidade);  reconfiguradoras (criam criaturas pós-humanas); melhoradoras (criam criaturas melhoradas em relação aos padrões humanos) _ que, afetando os dois tipos de ‘seres’ (humanos e trans-humanos), contribuem para confundir suas respectivas ontologias:
“Implantes, transplantes, enxertos, próteses. Serem portadores de órgãos ‘artificiais’. Seres geneticamente modificados. Anabolisantes, vacinas, psicofármacos. Estados ‘artificialmente’ induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percepção, a imaginação, a tesão. Superatletas; Supermodelos. Superguerreiros. Clones. Seres ‘artificiais’ que superam as limitadas qualidades (pelo menos as conhecidas) e as evidentes fragilidades dos humanos...Biotecnologias. Realidades Virtuais...Bit e Bytes que circulam indistintamente entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos. (TOMAZ,Tadeu, pag 12)

Esta conjunção entre o humano e a máquina também se revela num nível mais abstrato, “mais alto”, traduzindo-se numa grande confusão entre ciência e política, entre tecnologia e sociedade, entre natureza e cultura. Não existe nada que seja “puro” neste total e inevitável embaraço, que só um entendimento a partir das teorias da complexidade pode tentar decifrar.

Aquilo que caracteriza a máquina nos faz perguntar aquilo que caracteriza o humano. De que forma o ser humano está utilizando seu poder de criar que lhe é inato? Qual poder reside no pensamento humano? Como o desenvolvimento da Física Quântica contribui para o melhor entendimento de quem somos em essência e de como efetivamente suportamos o impacto do mundo em que estamos submersos? O que é o corpo, o que buscar quando o colocamos como objeto de estudo? Como a Filosofia através da apreciação do corpo, reflete sobre o ser no mundo? E por vias da semiótica como pensar o corpo _ dispositivo que opera de modo complexo _ como dispositivo em relação à informação visível e invisível? E o corpo cibernético neste processo de transformações vertiginosas e continuas como novo estatuto do corpo humano?

São questões presentes na tecnosfera como fruto de sua crescente ramificação a partir de extensões tecnológicas e replicações resultantes da decifração do genoma.

A cibercultura traz com ela transformação acelerada, plugada, abrangente, que reconfigura o espaço, o tempo, o ritmo e caracteriza uma era de construção e desconstrução, levantando pontos de interrogação nos mais variados ambientes e nas relações de interação entre ferramentas tecnológicas, cultura e sociedade.

O ciborgue nos força a pensar não em termos de “sujeitos”, de mônadas, de átomos ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades, tal como sugeridos, aliás, por uma “ontologia” deleuziana. O mundo não seria constituído, então, de unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas unidades em sua passagem. Primários são os fluxos e as intensidades, relativamente aos quais os indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários.(Haraway, 2009)
     
      Podemos nos valer do estudo apresentado por. Graziela Andrade (4) que traz uma classificação realizada por Santaella, em Corpo e Comunicação (2004), estabelecendo sete classes de corpos, que considera mais representativas, e que podem ser tomadas como as tendências de evolução para este tema dos ciborgues, sempre em processo de transformação:

O corpo remodelado
Refere-se às manipulações da superfície do corpo para fins estéticos, é a construção do corpo através de técnicas de aprimoramento físico, que vão desde ginásticas, musculação, até os implantes e cirurgias plásticas. Remete ao corpo enquanto mercadoria, construído, desenhado e empacotado conforme padrões.

O corpo protético
Este é o corpo corrigido e expandido por próteses que têm a função de amplificar ou substituir funções orgânicas. O corpo é cyborg por sua característica híbrida: lentes corretivas e próteses dentárias, marca-passos, órgãos artificiais e implantes de chips. Diferente do corpo remodelado, o protético visa alterações no interior do corpo humano.

O corpo esquadrinhado
É aquele revirado pelas máquinas médicas em busca de diagnósticos cada vez mais precisos. Tecnologias que perscrutam intimamente o corpo humano e transformam-no em imagens que nos tragam informações. São as tomografias, ressonâncias magnéticas, angiografias, entre várias outras.

O corpo plugado
Diz-se dos usuários que se movem no ciberespaço através de computadores, aos quais seus corpos estariam plugados, para a entrada e saída de fluxos de informação. Haveria níveis diferentes de imersão, de acordo com a capacidade dos sistemas técnicos em cativar os sentidos do usuário e bloquear os estímulos do mundo exterior. Quanto mais submergidos os sentidos, mais imersos estariam os usuários. A autora apresenta as subclassificações por nível de imersão:
 • Imersão por conexão
É um nível mais superficial, o corpo se pluga através dos sentidos e a mente navega via conexões hipermidiáticas, enquanto navegamos pela Internet ou CD-ROM.
• Imersão através de avatares
É quando o internauta incorpora um avatar, criando uma figura gráfica que o represente no ambiente virtual. Dessa forma, há uma duplicação de identidade, que gera uma hesitação entre presença e ausência, estar ou não. Portanto, caracteriza um nível um pouco maior de imersão.
• Imersão híbrida
Quando os mundos produzidos virtualmente se encontram com os corpos humanos. É um tipo de imersão que vem sendo muito usado em performances e danças, onde se criam ambientes imersivos, visualizações em 3D, designs de interfaces, entre outros. Já é comum também em programas de televisão que utilizam paisagens virtuais como cenário para os apresentadores, misturando campos virtuais e presenciais.
• Telepresença
Exploram a ubiqüidade e a simultaneidade, relacionando-se ao sentimento de estar presente em um lugar físico distante. O corpo do usuário faz conexões com um sistema robótico que está distante e, através dele, experimenta um lugar onde não está.
• Ambientes virtuais
Esse é o maior nível de imersão encontrado, dá-se em ambientes virtuais com o uso de instrumentos sofisticados para entrada e saída de informações. Os instrumentos de saída conectam a ordem sensorial ao mundo exterior com o intuito de iludi-las, enquanto os de entrada monitoram os movimentos corporais dos usuários e suas respostas.

O corpo simulado
A existência desse corpo ainda não é totalmente possível, mas estudos e investimentos têm sido feitos nesse sentido. Trata-se de um corpo completamente desencarnado, feito de algoritmos e tiras de números. Ele poderia ser uma versão tridimensional de um corpo plugado transportado para outros lugares, corpos numéricos imaginários sem, necessariamente, representarem um corpo físico ou uma simulação, que mimetize apenas os processos dos organismos vivos e não a aparência física de um corpo.

O corpo digitalizado
Reporta-se a um projeto específico, The visible human, que promove a digitalização integral do corpo humano, a partir de dois cadáveres doados a National Library of Medicine (NLM). Os corpos, um masculino e outro feminino, passaram por diversos processos, que envolveram desde ressonância magnética, até a sua extrema dissecação em lâminas fotografadas digitalmente. Tal manipulação acabou por aniquilar a massa dos corpos, de tão tênues que foram as secções. Dessa maneira, os corpos transformados em dígitos podem ser desmontados, remontados e navegados pela ciência.

O corpo molecular
É o corpo manipulado pela engenharia genética, que chegou ao conhecimento público a partir da divulgação das experiências do projeto genoma. Essas polêmicas experiências vão desde os transgênicos, até a clonagem de animais e seres humanos.

Num certo sentido, a aventura descontrolada da tecno-ciência pode ser considerada na atualidade, o maior problema da humanidade. Pois depende da civilização que hoje depende dela (tecno-ciencia). Segundo Edgar Morin, “a crise da antroposfera e a crise da biosfera remetem-se uma à outra, como se remetem uma à outra as crises do passado, do presente, do futuro,” (MORIN,  2005 pg 94)

A conexão eletrônica é apenas a parte visível de toda conexão cósmica a que estamos submetidos. Não é por acaso a ligação de Teilhard de Chardin (5) (1881–1955) com o avanço das conexões tecnológicas atuais e sua compreensão por McLuhan( 1911-1980) (6) e Pierre Levy (7) (1956-).

Embora tenha falecido em 1955, antes mesmo da difusão da televisão por todo mundo e quando os computadores ainda eram paquidermes enjaulados em grandes centros de pesquisas e mega-empresas, Chardin percebeu que a tecnologia estava criando um “sistema nervoso para a humanidade, uma membrana única, organizada, inteiriça sobre a Terra”, uma “estupenda máquina pensante”. Teilhard de Chardin escreveu que “a era da civilização terminou e a da civilização unificada está começando”. Essa membrana inteiriça, a noosfera, era, naturalmente, a ‘rede inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia global’.



acessado em outubro 2016
(5) Teilhard de Chardin, estudioso da noosfera e criador do termo; ver item noosfera desta pesquisa.
 (6) McLuhan foi um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense. Conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada. Desenvolveu o conceito de ‘aldeia global’, como forma de explicar os efeitos da comunicação de massa sobre a sociedade contemporânea, no mundo todo.

 (7) Pierre Levy  é um reconhecido pesquisador das tecnologias da inteligência e investiga as interações entre informação e sociedade. Mestre em História da Ciência e Ph.D. em Comunicação e Sociologia e Ciências da Informação pela Universidade de Sorbonne, é um dos mais importantes defensores do uso do computador, em especial da internet, para a ampliação e a democratização do conhecimento humano.

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